Antonio Risério
Li outro dia a observação, mas não me lembro onde, nem quem a fez. O sujeito dizia mais ou menos o seguinte: boa parte da população mundial, hoje, mesmo nos países mais ricos do Atlântico Norte, que é onde se concentram de fato o poder e a riqueza mundial, está e se sente "outsider", excluída. A imagem era interessante: as pessoas se sentem do lado de fora, olhando através de uma janela, a tremenda festa vai rolando lá dentro - o que pode ser lido tanto em sentido metafórico, quanto em termos pedestres, literais.
As pessoas estão excluídas da festa da riqueza. Mas, também, da própria festa. Da festa festa. Não sei se isto vale para a Suécia, por exemplo. É provável que sim. Mas, com certeza, vale para os Estados Unidos, que são, ao mesmo tempo, o mais poderoso e desigual dos países ricos. E bate em cheio, claro, nos países do hemisfério sul, estejam estes "em desenvolvimento" ou se achem decididamente pobres. Dos Estados Unidos e da França à Índia e ao Brasil, portanto.
A concentração da renda vai implicando, mais e mais, a concentração do entretenimento, da diversão, dos hábitos e práticas do lazer. A hierarquia econômica, a divisão da sociedade em classes, significa também hoje, como nunca antes na história, a divisão social do entretenimento, da diversão. Pelo simples fato de que nunca antes a diversão esteve tão vinculada ao dinheiro, ao consumo. É a capacidade de gastar, de consumir, que abre as portas ao divertimento, que discrimina o acesso social à diversão. As coisas não se passavam assim, com tal clareza e intensidade, há algumas décadas. Mas, hoje, a conexão está mais do que explícita: as vítimas da exclusão social estão, automaticamente, barradas no baile.
Em seu romance "In America", Susan Sontag nos conduz pelas mãos de uma narradora que entra de penetra numa festa, no salão privativo de um hotel. É interessante. Susan define o narrador dos romances como um penetra na festa dos outros. Mas sua narradora está deslocada no tempo - e é uma espécie de presença fantasmal naquela festa, onde ninguém a percebe. Mas isso é literatura. Nenhum "outsider" real é fantasmático. E é claro que não tem como entrar de penetra na festa. Não teria roupas para se travestir de convidado, não teria acesso ao convite, não passaria pelo cordão de segurança armado em volta do baile.
Tudo, hoje, é pago. E aí está o problema. No Brasil, o sujeito de classe média, obrigado a bancar a escola particular dos filhos, depois que as escolas públicas se mostraram inviáveis, não tem como bancar, também, a diversão deles. Vez por outra, uma pizza, um show, uma ida ao cinema. E este sujeito é, sem dúvida, um privilegiado, levando-se em conta a tremenda miséria nacional. Acontece que, ao contrário do que muitos pensam, diversão não é simplesmente uma coisa supérflua. É necessária a qualquer pessoa sã. Mas como comida e educação vêm em primeiro lugar, adeus entretenimento.
Ocorre que a sociedade em que vivemos nos bombardeia, diariamente, com doses maciças de publicidade dizendo que viver é consumir, se divertir, gastar. Viver é ter (comprar) prazer. Viver é exercer esta liberdade individual que só o dinheiro dá. Viver é estar lá dentro, fazendo parte da festa. Quem não está na festa, não está vivendo. Não sabe o que é a vida. E esta é uma das dimensões mais terríveis da ideologia dominante no mundo de nossos dias.
Quem não tem como entrar na festa, não é e se sente apenas um excluído. Sente-se, também, um fracassado. Uma pessoa que não teve êxito em ingressar no círculo feliz e luminoso dos consumidores plenos, dos que esbanjam energia, vitalidade, prazer. Dos que vivem plenamente porque plenamente podem exercer sua liberdade individual, essência da existência, pagando à vista ou a prazo.
A classe média, regra geral, adota uma postura resignada. Sofre em silêncio sua frustração. Engole a amargura em drama contido e silencioso. Outros, não. Partem para exercer de qualquer modo o seu direito de viver plenamente, tal como a mídia o define. Na base do exercício imprevisto de sua liberdade individual. Não pode consumir? Rouba, toma, extorque, expropria. É o seu modo de também participar, ainda que do lado de fora, da festa. E o que fazer diante disso? Prender essas pessoas, construir mais presídios - ou levar realmente a sério, de uma vez por todas, o que já vai correndo o risco de se converter em clichê para sossegar consciências culpadas, que é a chamada "inclusão social"?
Antonio Risério é poeta e antropólogo.
em ovos.
Há 11 anos
Um comentário:
muito bom.
por mais que pareça óbvio, ninguém fala objetivamente sobre isso. arrasou, seu Antônio! hashau! :P
[de onde eu conheço esse cara?]
ps: eu não sabia que vc tinha um blogue! O.o.
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